“Cinema, aspirinas e urubus”

“Cinema, aspirinas e urubus”

Ou o triste exílio de três urubus-de-cabeça-amarela em uma lúgubre, árida, barulhenta e desencantada obra de (des)arte

Por Regina Macedo*

Em uma instalação dita “de arte”, estrategicamente montada no vão central do Pavilhão da Bienal, no Ibirapuera, durante a 29ª edição da Bienal de Arte, três urubus-de-cabeça-amarela são mantidos confinados junto a caixas de som repletas de alto-falantes por onde escorrem músicas, como Carcará e Bandeira Branca. Um cativeiro lúgubre, a maior parte na cor preta, contrastando com o nome da obra: Bandeira Branca, de Nuno Ramos. Cada uma das três estruturas em granito escuro, construída dentro do espaço, carrega no alto uma caixa acústica de vidro, coberta de tela preta, e mais acima uma torre com uma minúscula base circular. As caixas e a pequena base das torres constituem os únicos locais de pouso para as aves, que acabaram escolhendo somente uma das construções para se posicionarem, provavelmente por ser o local onde conseguem ter a visão de todas as rampas que circundam o vão central.

E em uma das pequenas torres com sua caixa acústica, dias e noites as aves permanecem, pousadas em suas fezes brancas. Brancas como o nome da obra, brancas como a ausência de lucidez de humanos que ainda consideram impactante, inovador, exótico, prazeroso, inventivo, criativo, usar e abusar de animais. Maltratar. Subjugar. E, ainda, com o consentimento expresso por licenças emitidas por autoridades, que acabam no fio da navalha das brechas das leis. Leis que vedam a prática de maus-tratos, mas permitem a liberação da exibição e uso de animais silvestres em espetáculos, obras ditas de arte, apresentações, desde que “com autorização da autoridade competente”.

Autoridade competente que carrega, tantas vezes, conhecimentos mais do que suficientes para guardar, mesmo que silenciosamente, a certeza de que autorizou uma maldade. Mas se viu impelida a fazê-lo, não somente porque cabe aos funcionários públicos cumprirem leis, mas porque freqüentemente pressões das mais diversas resultam em autorizações que cabem dentro das linhas e entrelinhas dos textos legais, mas desconsideram detalhes mínimos de bem-estar animal, e sobretudo, passam ao largo de questões morais em relação ao uso e sobretudo aos abusos que a sociedade comete em relação aos animais, sejam eles domésticos ou silvestres.

Vidas, vidas subjugadas, privadas até de luz solar e da água em que amam se banhar, como no caso dos três tristes urubus-de-cabeça-amarela, confinados na lúgubre obra de arte. E impactados pela massiva presença humana e por uma balbúrdia de sons – emitidos pelas caixas acústicas da instalação e também por dezenas de outras obras de arte, que especialmente este ano concentram um número impressionante de recursos audiovisuais. Barulho em excesso, devidamente amplificado pela acústica (ou falta dela) do prédio da Bienal.

Uma situação lamentável, cruel, de um anacronismo absurdo nos tempos que os olhos dos mais diversos povos voltam-se para as formas possíveis de conter a acelerada destruição do Planeta. E, assim, saíram em defesa dos três urubus-de-cabeça-amarela defensores dos animais e ativistas de inúmeras correntes, inclusive o vereador Roberto Tripoli, num movimento que culminou no cancelamento da licença de transporte e exibição das aves, licença originalmente emitida pelo Ibama de Sergipe. Tal cancelamento implicou na intimação, expedida pelo Ibama-São Paulo, para que a Bienal providencie a repatriação das aves no prazo de cinco dias a contar de 1 de outubro.

Um vitória para a vida e para os animais, mas que só se consolidará quando o artista e a Bienal realmente encerrarem esse triste exílio dos animais. Vale lembrar que os ativistas e ambientalistas foram duramente criticados pelo médico veterinário e responsável técnico do criador instalado em Sergipe (Parque dos Falcões), local de origem das aves. Profissional, que apesar de encarregado pelo bem-estar dos silvestres mantidos em cativeiro naquele criadouro, afirma publicamente que “sol não faz falta para aves, e som não incomoda, tanto que galinhas confinadas, com música ambiente e sem sol botam ovos do mesmo jeito”.

Tal declaração demonstra o perfil desse profissional e de tantos outros que assinam papéis, documentos, atestados que atestam o impossível: animais silvestres vivem plenamente bem em cativeiro e, podem, sim, ser usados e exibidos em qualquer situação para deleite dos humanos, inclusive nessa obra de arte, onde a única arte possível é a arte do descaminho de nossa espécie. Essa estranha espécie que destrói biomas e a biodiversidade, construindo habitas artificiais, as poluídas e infernais cidades de concreto, onde a vida humana é sufocada e todas as outras formas de vida perdem espaço numa velocidade estonteante e perigosa. Cidades que invadiram e invadem áreas naturais, destruindo, desmatando, desflorestando, queimando, construindo muralhas, acuando a vida livre. A vida que depois precisa ser socorrida e mantida em cativeiro ou, até, reproduzida em cativeiro para que a extinção não se acelere mais ainda.

Cabe aqui ressaltar que se uma quantidade expressiva de técnicos, na contramão das atuais evidências ambientais, defende o uso de silvestres para deleite dos humanos, inclusive como animais de estimação, outros tantos felizmente estudam e trabalham, arduamente pela conservação, salvando indivíduos e brecando a extinção acelerada. Profissionais que lutam contra o uso abusivo de silvestres por humanos. É o caso da médica veterinária Cristina Harumi, especialista na conservação de felinos silvestres e Coordenadora de Fauna da ONG Mata Ciliar, onde técnicos lutam dia e noite para avançar na hercúlea tarefa de preservar espécies silvestres, principalmente felinos, acuados e massacrados pelo avanço das cidades e da agropecuária.

Por fim, devemos aproveitar a polêmica dos urubus e discutir amplamente a questão do uso legal, mas imoral, dos animais silvestres, principalmente como animais de estimação ou companhia. Fiscais do Ibama e policiais federais vem falando abertamente que uma quantidade impressionante de criadouros legalizados “esquenta” filhotes retirados ilegalmente da natureza, jogando-os depois no comércio legal de vida silvestre. Isso porque leis federais e normas variadas do Conama e do Ibama permitem a figura do criador comercial que produz e reproduz silvestres para o comércio pet.

Uma atividade comercial que precisa ser extinta. E isso implica na luta pela modificação da legislação vigente. Afinal, criadouros comerciais, mesmo aqueles que eventualmente respeitam toda a legislação vigente, são locais onde aves, mamíferos, répteis, anfíbios, peixes vivem confinados reproduzindo-se e reproduzindo a triste sina para suas crias, de jamais desfrutarem da liberdade, das condições biológicas e naturais para as quais, geneticamente, foram preparados pela teia da vida. Bandeira branca para a vida silvestre. Não ao uso de silvestres como enfeites, objetos de poder ou decoração, obras de (des)arte, bichos de estimação. Bandeira branca, a vida pede passagem.

Detalhe – o título desse artigo remete ao filme brasileiro “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes, que fala de angustias e dores das almas humanas, mas também descortina, com intensa sensibilidade emocional e técnica, a vida natural que brota nos ambientais mais inóspitos, como o quase deserto nordestino onde o filme foi ambientado, onde urubus voam majestosamente e vivem livremente como parte do bioma e da teia da vida.

Regina Macedo – jornalista ambiental, dona de olhos que vêem e enxergam a dor da biodiversidade acuada e barbarizada por nossa espécie. Outubro de 2010.
Email: reginamacedo@terra.com.br

Share this post

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *